Léo e Bia (Oswaldo Montenegro)
No centro de um planalto vazio
Como se fosse em qualquer lugar
Como se a vida fosse um perigo
Como se houvesse faca no ar
Como se fosse urgente e preciso
Como é preciso desabafar
Qualquer maneira de amar varia
E Léo e Bia souberam amar
Como se não fosse tão longe
Brasília de Belém do Pará
Como castelos nascem dos sonhos
Pra no real achar seu lugar
Como se faz com todo cuidado
A pipa que precisa voar
Cuidar de amor exige mestria
E Léo e Bia souberam amar
Se Puder Sem Medo (Oswaldo Montenegro)
Deixa em cima desta mesa a foto que eu gostava
Pr'eu pensar que o teu sorriso envelheceu comigo
Deixa eu ter a tua mão mais uma vez na minha
Pra que eu fotografe assim meu verdadeiro abrigo
Deixa a luz do quarto acesa a porta entreaberta
O lençol amarrotado mesmo que vazio
Deixa a toalha na mesa e a comida pronta
Só na minha voz não mexa, eu mesmo silencio
Deixa o coração falar o que eu calei um dia
Deixa a casa sem barulho achando que ainda é cedo
Deixa o nosso amor morrer sem graça e sem poesia
Deixa tudo como está e, se puder, sem medo
Deixa tudo que lembrar, eu finjo que esqueço
Deixa e quando não voltar, eu finjo que não importa
Deixa eu ver se me recordo uma frase de efeito
Pra dizer te vendo ir, fechando atrás da porta
Deixa o que não for urgente, que eu ainda preciso
Deixa o meu olhar doente pousado na mesa
Deixa ali teu endereço, qualquer coisa, aviso
Deixa o que fingiu levar, mas deixou de surpresa
Deixa eu chorar como nunca fui capaz contigo
Deixa eu enfrentar a insônia como gente grande
Deixa ao menos uma vez eu fingir que consigo
Se o adeus demora, a dor no coração se expande
Deixa o disco na vitrola pr'eu pensar que é festa
Deixa a gaveta trancada pr'eu não ver tua ausência
Deixa a minha insanidade, é tudo que me resta
Deixa eu por à prova toda minha resistência
Deixa eu confessar meu medo do claro e do escuro
Deixa eu contar que era farsa minha voz tranqüila
Deixa pendurada a calça de brim desbotado
Que como esse nosso amor, ao menor vento oscila
Deixa eu sonhar que você não tem nenhuma pressa
Deixa um último recado na casa vizinha
Deixa de sofisma e vamos ao que interessa
Deixa a dor que eu lhe causei, agora é toda minha
Deixa tudo que eu não disse mas você sabia
Deixa o que você calou e eu tanto precisava
Deixa o que era inexistente e eu pensei que havia
Deixa tudo o que eu pedia mas pensei que dava
O Mesmo Assunto (Oswaldo Montenegro)
Olha, nego
Desculpe, mas me cansa repetir a mesma coisa
Todo dia insistindo em fazer saltar os olhos
O que os olhos não conseguem enxergar
Olha, nego
Desculpe, mas me cansa repetir o mesmo assunto
Ou pior, perdê-lo no turbilhão de frases feitas
E a mim falta saúde pra agüentar
Olha, nego
Em mim não sobrou ilusão
Mas de sã consciência lhe afirmo meu nego
Farei o possível se for pra ajudar
Mas se não, não quero esse papo doente
E sem conseqüência palpável, meu nego
Não conte comigo pra filosofar
Eu quero é na sombra da velha mangueira amar a morena
E sentar num papo sem pressa
Mexendo o canudo num copo de maracujá
Você apareça, que a gente aprecia
Por Deus, nem precisa avisar
Mas usa essa mente sem acrobacia, nego
Clareza, é preciso tentar
Olha, nego
No fundo eu compreendo a tua cuca
E a tua culpa eu também sinto
Mas não acho justo a gente se iludir
Que adianta a luta na mesa do bar
Olha, nego
Enquanto não for pra valer
Apareça lá em casa sem medo ou remorso
Pra, com alegria, ajudar quem não tem
Quem Havia de Dizer (Oswaldo Montenegro)
E quando de repente atravessando
A mesma rua engarrafada
A gente se encontrar
Eu sei que você vai imaginar
Que como fazem na TV
Uma canção romântica há de vir no ar
Selar o encontro que o corpo sente
E o coração aos pulos quer viver
E quando a gente descobrir que as coisas
Não são mais como propunha o passado pro futuro
Quem havia de dizer?
A gente se encontrando e os som dos carros no seu movimento
Encobrindo a nossa falta de assunto
E de prazer
Que a gente finge ter no chop
Enquanto busca o que dizer
E quando as palavras forem todas repetidas
E o tédio for aquilo que o cigarro disfarçou
E quando, entediadas, nossa mãos se derem
Não entrelaçadas, como até convém
Mas sim como pousadas sem destino
Sua mão em desatino sobre a minha solidão
E quando a nossa dor feita silêncio
Nos fizer virar as costas
Levantar sem qualquer gesto, sem palavras
Sem canção alguma a buzinar no ar
Sem ter remédio ou poesia
Como alguém normal faria
A gente se vê qualquer dia
Grande abraço, e quem diria?,
Sem sequer nos lamentar
Fruta Orvalhada (Oswaldo Montenegro)
Eh, morena, ta faltando essa areia molhada
E o cheiro de sal madrugando na boca da gente
E o sono na rede embalando teu corpo
E a roseira fazendo das suas
Nascendo uma rosa na lua e o luar no jardim
Abacaxi ta faltando, e limão, tangerina
No gosto da boca e a rima fluindo da noite
E o cabelo cheirando a jasmim
De manhã, manga rosa aparece molhada
Teu corpo é fruta orvalhada que a terra
Preparou pra mim
Guerreiros das Sombras (Oswaldo Montenegro)
Frases escritas com sangue na nossa memória
Guerreiros das sombras
Nossa canção escudeira rompendo castelos em meio à batalha
Nobres varões escoltando a riqueza tomada do cofre do rei vilão
Doces donzelas esperam o terno momento do encontro primeiro
Gritam arautos nos cantos cantando a chegada do primeiro dia
Todo barulho aumenta
Tambores inflamam o grito sonhado
Festa por todo o reino na vinha distante é colhida a semente
Brilho de um sol ardente ilumina a estrada que leva à conquista
Tranqüilo Violeiro (Oswaldo Montenegro)
Aqui fala um tranqüilo violeiro astuto e matreiro
Perambulante pelas ruas da cidade ex-maravilhosa
Aqui fala um artista iniciante
Que buscou na dissonância do acorde a expressão da melancolia
Aqui fala um poeta que tem raça
Carregando pela rua essa vontade que o povo me escute
E que aplauda o que eu sinto
Mesmo que não seja, lindo é sincero
E vocês vão ter que ouvir com atenção
Pois aqui fala uma fera que agride com seu canto
E traz poeira na fachada
E quem quiser me desafie
Que eu não tenho muito medo de quem treme no sorriso
Mas respeito quem me entende e aceita o desafio
De ser livre e andar perambulante
E largar os compromissos
Velhas coisas que quiseram me contar
Mas eu não quis ouvir
Retrato - Poeta Maldito, Moleque Vadio (Oswaldo Montenegro)
Eu canto sou força que esmaga, não mente, consente
Que sabe sorrir quando a hora é de luta
Sinal esperado, meu peito rasgado é sinal de fé
Eu grito, sou vento, poeira, sou pó, ventania
Gramado sem gente, covarde, valente
Soldado ou tenente, depende da hora o que eu cismo de ser
Sou louco, poeta maldito, moleque vadio
Moleque de pedra, de jogo de bola, de bola de meia,
De sol, goiabeira, de pó de quintal
Enfim, sou a mesma palavra num outro sentido
Mero menestrel das angústias urbanas
O louco Quixote da realidade, da grande cidade
Moinho a vencer
Quem Diria? (Oswaldo Montenegro)
Seu moço repare a seu lado
Se o mundo caminha correto
Mas não olhe tão descuidado
Bobeia eu logo lhe espeto
Que a vida não ta pra brinquedo
Um sopro já faz ventania
Valente é quem diz que tem medo
O bom porto não traz calmaria
Não faça pergunta sem nexo
Nem vá responder se não sabe
Que o grande segredo do sexo
É fazer caber se não cabe
E nisso resume-se a vida
No poder fazer quem não pode
No poder amar quem lhe agride
No poder matar quem lhe acode
Enquanto um fala besteira
O outro só filosofa
Enquanto um pula a fogueira
O outro rega a farofa
Enquanto um pula pra briga
O outro pula pros cantos
Enquanto um pede guarida
O outro prossegue aos trancos
Enquanto um sobe no muro
O outro apela pros santos
A gente ensaia pra burro
E o povo vê Silvio Santos
Enquanto um cede à loucura
O outro cede à ganância
O que pro pobre é frescura
Pro rico é trauma de infância
O Artista e o Santo (Ulysses Machado)
Ai de Maria!!!
Reza por displicência
Ai de Maria,
Populus vult!
Ai te ti
Amém
Tudo o que o artista fala é engraçado
O artista é um santo disfarçado
Daquilo que o santo não gosta de ser
E tudo o que artista faz é engraçado
O artista é um bichinho danado
Que o santo não gosta, mas quer ser
Santo é forte, carrega nas costas
O artista carrega onde der pra carregar
Santo é forte, garante na morte
O artista de sorte garante a do santo
Santo é forte não precisa de reza
O artista que não reza não vai lá
E não me apurrinha, que o santo é capeta
O artista é porreta, eu quero virar
E se o artista rebola é engraçado
Santo não rebola, que o santo é danado
Santo é diferente, santo é displicente
Santo é do pau oco, santo é do rosário
O espírito é santo, santo é necessário
E o que a Santa Trindade tem de eleitorado!
E se o artista rebola
E tudo que o artista fala é engraçado
Santo leva a sério e convence o diabo
Deus está presente na ausência do santo
Deus foi o primeiro a ser canonizado
E se o artista repete, Deus castiga
E se pede perdão, ta perdoado
E tudo que o artista fala é engraçado
E o santo, coitado, faz pela metade
Que o santo é de todos o mais responsável
Pelo bom controle da natalidade
E o milagre do filho abandonado
É o mistério da santa castidade
Gaivota (Oswaldo Montenegro)
Como pode, sem ensino
A gaivota pequenina, tão menina
Se voar pela primeira vez?